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Um ar de sua Graça

A prima Josseline

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A prima Josseline não era nossa prima. Era prima de uma prima da minha avó. A prima Jusseline era viúva, vivia em Coimbra e vinha passar temporadas à terra a casa da prima. Da prima verdadeira. Foi aí, em casa da prima em comum que a minha avó e ela se conheceram. Ficaram amigas… e primas.


Quando conheci a prima Josseline era eu bem miúda. Quando a via ficava como que hipnotizada, não conseguindo desviar os olhos dela. A aparência dela e a sua atitude não deixavam ninguém indiferente.


Era pequena e magra. Cabelo grisalho impecavelmente penteado e preso num carrapito. Rosto comprido e enrugado. Olhos pequenos, muito vivos, míopes. Óculos de aros redondos e dourados encavalitados no nariz adunco.


E as toilettes? Ah, as toilettes! Usava sempre blusas brancas ou de cor clara, de mangas compridas e bem ajustadas nos pulsos. Tinham nervuras ou pequenas rendas ou uma fiada de pequenos botões forrados ou de madrepérola. Sempre muito bem engomadas. As saias eram compridas, pretas, até aos tornozelos. E um cinto cingia a cintura fina. Normalmente vestia por cima um casaco comprido, preto.


Nos pés pequeninos calçava sapatos de camurça com salto elegante. Na mão uma pequena malinha.


Mas o charme de todos charmes residia em dois acessórios que eu não via usar em mais ninguém e que  considerava serem o expoente máximo da elegância: a prima Josseline nunca saía à rua sem um elegante chapéu preto na cabeça. E mais, ao pescoço usava sempre, mas sempre uma fitinha de veludo preto, bem ajustada, onde espetava um grande medalhão. Era a sua imagem de marca.


Absolutamente fascinante!


De tal maneira eu achava aquela fita de veludo o que de mais requintado vira até então que resolvi pedir à minha avó que me arranjasse uma fita igual. Cosi-lhe um colchete, colei-lhe uma latinha redonda que encontrei algures e eis-me pronta para brincar às senhoras finas e elegantes com as minhas bonecas.


A prima Josseline com a sua personalidade austera fazia-me lembrar as preceptoras inglesas dos filmes e livros antigos que retratavam uma época bem longínqua.
Por vezes a prima Josseline visitava a minha avó. Eu não saía de junto delas, sentada muito sossegada a observar os seus modos, os seus trejeitos, os seus gestos delicados. E divertia-me ao vê-la pegar na asa da chávena de chá com o dedo mindinho bem espetado. Até este gesto eu imitava nas minhas brincadeiras.


A prima Josseline parecia saída daqueles figurinos do princípio do século. Do século vinte, bem entendido.


Tenho pena de não ter uma fotografia dela e pena, muita pena de não ter jeito para desenhar. Ah! Como eu gostaria de registar numa folha de papel a imagem que mantenho na memória desta senhora tão singular.

Lá vai uma, lá vão duas, três girafas a saltitar

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Foi quando passeava por uma rua de Chaves que a minha mãe viu numa montra um tecido que lhe chamou a atenção. Aproximou-se para ver melhor. Era de lã, azul-escuro, com girafas bordadas à máquina. Ficou rendida. E decidiu entrar. A dona da loja explicou-lhe que o tecido tinha sido bordado por ela e que só bordava poucos metros de cada peça. Porque dava muito trabalho, para não haver repetições e que variava os motivos de tecido para tecido. Mostrou-lhe outros que bordara, com motivos diferentes mas as girafas enfeitiçaram a minha mãe. Foi amor à primeira vista. E comprou o suficiente para me fazer uma saia de corpo. Por saia de corpo entenda-se uma saia com alças e peitilho.


Chamou a menina Quitas para me fazer a saia. A menina Quitas era uma costureira que vinha trabalhar a casa das clientes E foi muita a roupa que tive costurada por ela.
Também a menina Quitas se rendeu às girafas. Ficou encantada com elas e era grande o seu receio de cometer algum deslize na execução da saia. Algum ponto fora do sítio, ou pior a ainda, sem remédio, decapitar alguma girafa com a tesoura afiada.


Um dia apareceu lá em casa com olheiras, queixando-se:


- Sabem lá! Dormi tão mal! Só pesadelos! E o pesadelo foi sempre o mesmo a noite toda, sonhei que as girafas tinham fugido da saia. Passei a noite a correr atrás delas para as apanhar.  


Mas a saia concluiu-se sem sobressaltos. Sempre com as girafas bem alinhadas e bem comportadas na roda da saia. Naquele tempo a roupa era feita para durar e durar e durar. Com largas costuras e grandes bainhas. E a saia das girafas não fugiu à regra. Eu crescia e a saia foi crescendo comigo. As costuras iam-se alargando e a bainha ia descendo. Teria no máximo os meus quatro anos quando a saia ficou pronta e com dez já a caminho dos onze anos ainda a vestia. A data no verso da fotografia não deixa dúvidas.

 

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Quando a minha filha tinha os seus três, quatro anos, a saia das girafas saiu da arca onde se guardara e voltou à luz da ribalta. Desta vez seguiu-se o caminho inverso. Apertaram-se as costuras, subiu-se a bainha. E foram vários os invernos em que ela a vestiu. Depois… voltou à arca.


Teria a sua graça se a saia das girafas ainda viesse a vestir a terceira geração da família. Mas apressem-se filhos… antes que as girafas sejam devoradas pelas traças.

 

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O prazer de ler

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 Devo o gosto pela leitura ao meu pai e à Gulbenkian.  


Recordo a disponibilidade do meu pai para me ler histórias à noite, desde bem pequenina. Era um momento feliz. Só nosso. De grande cumplicidade entre ambos.


Morávamos em Pedrogão Grande. Tinha eu os meus quatro, cinco anos. À época não havia biblioteca pública nem livraria. Mas periodicamente surgia junto a capelinha de S. Sebastião a carrinha itinerante da Gulbenkian. O meu pai levava-me com ele. E requisitava livros para ele e para mim.


Aquela visita à carrinha cinzenta era uma festa. Adorava aquela casinha ambulante, toda forrada de livros por dentro, desde o chão até ao tecto. Um espaço pequenino mas tão bem aproveitado! Nunca tinha visto tantos livros juntos. E o cheiro? O cheiro dos livros misturado com o da madeira das estantes! E a simpatia dos dois senhores que traziam todo aquele mundo mágico até mim? Lembro-me particularmente de um deles, de cabelo e barbas brancas, bem velhinho. Pelo menos assim me parecia. Hoje interrogo-me se seria tão idoso como eu o recordo. Tratava-me com a bonomia de um avô.


E regressávamos a casa, o meu pai e eu, contentes com as aquisições que fizéramos e que nos iriam entreter durante alguns serões.


E, sentados lado a lado, o meu pai lia-me todas aquelas histórias que ainda hoje povoam o imaginário infantil.


E dizia-me que quando aprendesse a ler poderia ir sozinha requisitar os meus livros.


E assim foi.

 

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Mal consegui juntar as letras, obtive o meu primeiro cartão de leitora. Assinado com a minha ainda trémula e irregular assinatura. Achava-me a pessoa mais importante do mundo. Entrara no mundo dos crescidos.


Ir sozinha até ao largo onde a carrinha estacionava representava a liberdade, a autonomia. E um mundo onde não havia malfeitores, perseguidores de criancinhas, papões, perigos.Depois fomos viver para Odemira. Aí já existia uma biblioteca municipal. Pequenina e acolhedora. O responsável por ela era o senhor Manuel dos Reis, pai da minha amiga Luzinha.Íamos sempre em grupo, às sextas feira à tarde de quinze em quinze dias, se bem me recordo. As minhas amigas Isabel Flores, Ana Maria, Luzinha, Eduarda e eu.

 

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O senhor Manuel dos Reis tinha uma paciência infinita com este grupo de miúdas tagarelas, que mexiam e remexiam nos livros até se decidirem por aqueles que levariam para ler.  Com toda a afabilidade e simpatia orientava-nos, sempre que necessário, nas nossas escolhas. Era uma época em que lia compulsivamente. Até às escondidas dos meus pais, já de noite na cama, debaixo dos lençóis, quando eram horas de dormir e não de leituras.
Os meus livros preferidos do final da infância e pré-adolescência? As aventuras dos cinco de Enid Blyton, sem qualquer dúvida. Li toda a colecção. Não só li mas reli e reli e reli.


Com o Júlio, o David, a Ana, a Zé e o cão Tim eu sentia-me o sexto elemento do grupo. Com eles subi à torre mais alta do castelo da  Bela-Vista, tornei-me amiga da ciganita, transpus  amedrontada os tenebrosos portões da Casa do Mocho, percorri subterrâneos, trepei íngremes ravinas. Com eles persegui ladrões e contrabandistas, encontrei tesouros, resolvi os mais intrincados mistérios. Ah! E salivei com os deliciosos lanches preparados pela tia Clara.

 

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Tenho alguns destes livros que me foram oferecidos pelo meu pai. Quando os retiro da estante para lhes limpar o pó, revivo todas estas aventuras e é enorme o desejo de voltar a lê-los. Mas desisto e volto a colocá-los na estante.

 

É que não quero quebrar o encanto… 

 

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Um casaco feito a quatro mãos

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Há muito, muito tempo quando eu era criancinha, as lojas de pronto a vestir infantil eram praticamente inexistentes. Meninos e meninas andavam mais ou menos bem vestidos, com mais ou menos bom gosto, consoante as possibilidades económicas da família ou a habilidade das mães. As famílias abastadas contratavam bordadeiras, tricotadeiras, costureiras, que bordavam, tricotavam, costuravam as roupinhas das crianças.


A minha mãe não precisava de recorrer a ninguém. Ela bordava, ela tricotava, ela costurava. No entanto, por norma, recorria a costureiras para confeccionarem os vestidos, saias, casacos. Mas os pormenores eram com ela. E eu, modéstia à parte, andava sempre muito bem vestidinha, usava peças exclusivas e únicas que saíam da imaginação e das mãos da minha mãe.


Está neste caso este casaco de malha. Foi tricotado quando eu tinha dois anos. A minha mãe pretendia bordá-lo mas não havia em revista alguma desenhos que a motivassem. Ou porque não se adequavam à temática infantil ou porque eram demasiado grandes para um casaco tão pequeno. Desabafou com o meu pai a sua desilusão.


-Se não há motivos que te agradem para o casaco, então desenho-os eu!


Convém acrescentar que o meu pai até tinha jeitinho para desenhar e gostava de fazê-lo. E assim foi. O meu pai muniu-se de lápis e papel, a minha mãe foi dando ideias e, numa harmoniosa parceria, os desenhos foram nascendo, e a composição ficou definida. Depois, a fase seguinte pertenceu à minha mãe. Escolheu as lãs, as cores, ensaiou os pontos. E bordou o casaco.

 

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Conta a minha mãe que o meu pai, ao contrário do que era habitual, desta vez seguia atentamente todo o processo de execução do bordado. Encantava-se vendo nascer os pintainhos, o barco a navegar nas águas tranquilas, as velas do moinho que pareciam girar ao sabor do vento, o menino e a menina que estavam prestes a saltitar ao encontro um do outro para brincarem juntos. Esta obra era também um bocadinho dele.


Quando me via com ele vestido enchia-se de orgulho pela co-autoria. Usei o casaco até já não caber nele. Depois foi cuidadosamente guardado pela minha mãe que o envolveu em papel de seda, dentro de uma antiga arca onde continua até aos dias de hoje.

 

Apesar de muito velhinho, gosto muitíssimo dele e sempre que o olho sinto uma vontade enorme de tricotar e bordar um casaco inspirado nele. Mas não tenho netos… Enfim… fazendo o casaco já não falta tudo…!

 

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O mais belo presente do mundo

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Tinha a minha mãe os seus cinco ou seis anos quando recebeu de presente uma boneca de porcelana. Foi-lhe oferecida pela avó que um dia veio a Lisboa e a comprou na Feira da Ladra. Ao abrir a caixa a minha mãe ficou extasiada. Nunca tinha visto uma boneca tão linda como aquela. Sentiu-se a menina mais afortunada do mundo. Nem o Sr. Comendador lhe oferecera um presente assim.

 

Imediatamente a boneca, dentro da sua caixa, foi guardada dentro de um baú e este fechado à chave. Um presente daqueles não era para andar pela casa aos tombos nem à mão pouco cautelosa de uma criança. Só de tempos a tempos a minha mãe tinha ordem de ver a sua adorada boneca. Quando a mãe estava disposta a tal. Então a mãe abria o baú, retirava a caixa e levantava a tampa. A minha mãe recebia a boneca, sempre dentro da caixa e presa por atilhos. E embalava-a docemente. E contemplava-lhe embevecida a beleza do rosto. Admirava as faces rosadas, os olhos imensamente azuis, pestanudos, que abriam e fechavam. Os lábios sorriam docemente mostrando uns dentes pequeninos e muito brancos. E que deliciosa aquela covinha no queixo! Os anos foram passando, a minha mãe crescendo, e a boneca, a pouco e pouco, foi sendo cada vez menos visitada.

 

Até que, certa vez, já adulta, a minha mãe resolveu matar saudades da sua querida boneca. Abriu o baú, retirou a caixa, levantou a tampa… E um grito de terror ecoou pela casa! Toda a gente ocorreu ao grito da minha mãe…

 

Olharam para dentro da caixa e ficaram horrorizados! A bela boneca de porcelana tinha sido assassinada!!! O cabelo natural soltara-se da cabeça. A boneca estava careca! Os braços arrancados, os pés decapitados! O chapéu e o vestido completamente esburacados. Ninguém conseguia acreditar no que via. Retirou-se a boneca da caixa. Por baixo dela, minúsculos bichinhos roedores corriam de um lado para o outro. Estavam descobertos os assassinos.

 

A boneca foi limpa, arejada, colocada numa nova caixa. E não voltou a ser a mesma. Quando a conheci era já neste estado que se encontrava. Muito tempo se passou. Um dia, passando na Praça da Figueira, em Lisboa, a minha mãe reparou num letreiro na fachada de um prédio “Hospital das Bonecas”. Uma campainha tilintou-lhe na cabeça. Entrou. Ao balcão estava uma senhora.

 

A minha mãe pergunta - Aqui arranjam bonecas? - Só vendo! - respondeu a senhora do balcão. -Aaaaaahhhhh! – foi o som decepcionado que minha mãe conseguiu emitir.

 

Agradeceu e veio embora. Pelo caminho até casa pensava intrigada “mas como é possível só venderem bonecas se aquilo é um hospital???”. Não se dando por vencida, algum tempo depois voltou a passar por ali e resolveu entrar de novo. A mesma senhora ao balcão.

 

E de novo a mesma pergunta da minha mãe: - Aqui arranjam bonecas?

E, invariavelmente, a mesma resposta da senhora do balcão: - Só vendo!

 

Desta vez a minha mãe não se calou e comentou intrigada: - Mas como é que só vendem bonecas? Se é um hospital é suposto que as consertem!

- Não, não é isso. O que eu quero dizer é que precisamos de VER a boneca para decidirmos se tem arranjo! Quando digo “só vendo” é VENDO do verbo VER!!!

 

Desta vez o “ Aaaaaahhhh!” emitido pela minha mãe tinha uma sonoridade bem diferente. E fartaram-se de rir as duas pelo equívoco. Pouco tempo depois a moribunda boneca de porcelana deu entrada no hospital das bonecas. Saiu de lá como nova, ressuscitada, mas desvirtuada da sua antiguidade. A minha mãe e eu sentimo-nos algo defraudadas com o resultado. Não apreciámos o cabelo, muito menos o vestido. Mas antes assim, vivinha, do que esburacada e morta.

 

O primeiro brinquedo da minha mãe

Actualmente estão na ordem do dia as discussões mais ou menos acaloradas sobre se deve haver brinquedos para meninas e brinquedos para meninos, livros específicos para um género ou para outro, se as meninas devem vestir de cor-de-rosa e os meninos de azul.


Pois a minha mãe, há 91 anos, estava muito à frente. Porquê?

 

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Porque, pasme-se, este foi o seu primeiro brinquedo! Brinquedo para menina? Brinquedo para menino?


Uma coisa é certa! A ninguém restará dúvidas de que este é precisamente o brinquedo mais adequado para um bebé de poucos meses, seja menina ou menino!!!


Este cavalinho foi-lhe oferecido pelo Sr. Comendador. O Sr. Comendador era uma das pessoas mais ilustres da terra. O título com que foi agraciado assim o indica. Era senhor de muitos negócios, de muitos bens, de muita riqueza. Ora acontece que o Sr. Comendador precisava de se ausentar com muita frequência. Saía em negócios, para Lisboa e para o Brasil, saía em lazer para as termas ou para a Europa.  Durante a sua ausência era o meu avô António que lhe tratava dos seus muitos e variados assuntos burocráticos.


Quando regressava trazia sempre um presente para a minha mãe. Este foi o primeiro de muitos.


O brinquedo é feito em folha de Flandres e é de corda. E fez as delícias da minha mãe, que coitada, nunca teve ordem de lhe tocar. Era a mãe ou a avó que lhe davam corda e então… era vê-lo partir indomável, intrépido, endiabrado, em correria desenfreada, rodopiando velozmente, voltando para trás, empinando-se, não se sabendo ao certo se era o cavaleiro que conduzia o cavalo se era o cavalo que conduzia o cavaleiro.


Também eu, em criança me diverti com ele… mas a história repetiu-se. A minha mãe dava-lhe corda e eu assistia perfeitamente maravilhada às façanhas deste cavalito. Tocar-lhe? Nem me atrevia! Se estendia a mão para o agarrar, sentia o olhar da minha mãe sobre mim, semelhante a alfinetadas, e a mão retraia-se de imediato. O cavalo também desde logo chamou a atenção dos meus filhos. Começaram por espreitá-lo na vitrine onde a minha mãe muito ciosa daquela relíquia, ainda hoje o guarda. Quando pediam para pô-lo a cavalgar pelo chão da sala, eu nem me atrevia a fazê-lo. Não fosse eu estragar algo tão religiosamente protegido ao longo dos tempos. Eram, ora o meu pai, ora  a minha mãe a fazê-lo.


Porque, todos nós, de geração em geração, não tivemos ordem de lhe pôr a mão durante a infância, ele chegou aos nossos dias em bom estado.


Até que um dia, não há muito tempo, inexplicavelmente, a corda partiu-se e o cavalinho imobilizou-se para sempre.


Ainda hoje, quando fiz algumas perguntas à minha mãe sobre o seu primeiro brinquedo para escrever este post, vislumbrei uma expressão triste no seu olhar e desabafou:


-Tenho tanta pena que ele já não possa correr!  

 

A minha avó Clementina

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A minha avó Clementina teve uma vida longa. Nasceu quando reinava D. Carlos e quando faleceu eu já tinha 45 anos. Depois de ter faltado 2 dias para assistir ao seu funeral, uns alunos interpelaram-me incrédulos:


- Imagine que nos disseram que a professora foi ao funeral da sua avó! Mas não pode ser! Isso não é possível!


Respondi que sim, que era possível, que era verdade. Abriram-se bocas de espanto. Para miúdos de 11, 12 anos, uma pessoa de 45 está praticamente fossilizada, como é que podia ainda ter avó???!!! Continuavam a olhar-me desconfiados.


-Não pode trazer uma fotografia dela para nós vermos? – perguntou uma miúda mais espevitada.


E no dia seguinte, para que as dúvidas se dissipassem, levei uma foto onde ambas posávamos, a minha avó de olhos sorridentes e expressão prazenteira. Só assim se convenceram.


Foi então que lancei mais uma acha para a fogueira ao informá-los que tinha ainda outra avó, mas esta, graças a Deus, estava viva e benzinho de saúde. Ainda se abriram algumas bocas, ouviram-se alguns “ahs” de surpresa mas já ninguém ousou manifestar-se. Perceberam que daqui tudo se podia esperar!


A minha avó Clementina era a mais nova de quatro irmãos. Os três mais velhos nunca frequentaram a escola. Mas a minha avó tanto suplicou, tanto implorou que lá a deixaram ir fazer a instrução primária que, naquela época, primeiros anos da 1ª República , era de três anos.


Sempre a ouvi falar daqueles três anos como o que de mais maravilhoso lhe acontecera. E os livros por onde aprendeu a ler, a escrever e a contar foram sempre por ela guardados como se de algo sagrado se tratasse. E ainda existem religiosamente acautelados por nós. Como é de calcular, numa época em que a taxa de analfabetismo em Portugal era elevadíssima, a maioria das amigas da minha avó não sabia ler nem escrever. Muitas delas tinham filhos emigrados. Como saber notícias deles?


Uma amiga lembrou-se de pedir à minha avó que lhe lesse as cartas recebidas e lhes desse resposta. E atrás desta amiga outras vieram. Em certos dias a casa parecia um escritório de “import e export”. E eu, miúda, observava com curiosidade. A leitura das cartas, as novidades, a lágrima ao canto do olho pela saudade, os risos pelas traquinices dos netos que mal se conheciam. Depois, era ditada a carta de resposta que a minha avó escrevia meticulosamente com a sua caligrafia miudinha e perfeita. E a minha avó tornou-se, assim, a fiel depositária de alegrias, tristezas, confidências, segredos, vividos por ela com a mesma intensidade como se da sua família se tratasse.


Mas não era só a sua caligrafia que era perfeita.


Onde punha as mãos tudo saia bem. Como nunca viveu na abundância habituou-se a poupar e tudo aproveitar. Nas mãos dela o lixo tornava-se luxo, como hoje se costuma dizer. Dos sacos da farinha fazia guardanapos e panos da loiça.


De tecidos velhos e sobras de lã fazia tapetes bordados usando formas mandadas fazer no latoeiro, nos tamanhos pretendidos.

 

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Presentemente, como já não temos um latoeiro ao virar da esquina, podemos fazer os moldes em cartão, tal como eu fiz, para um tapete que estou a tentar bordar. Na foto poderão ver a técnica usada.

 

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Com sobras de tecidos e linhas de bordar fazia estas almofadas. Ela recortava, caseava, inventava os desenhos e bordava-os. Acho-as adoráveis, tanto mais que me lembro da minha avó a bordá-las com ar entusiasmado e concentrado, com a língua ao canto da boca como fazem as crianças quando estão entretidas a desenhar.

 

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Umas almofadas muito, muito velhinhas

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Muito recentemente a minha mãe fez 91 anos. Há poucos meses deixou de fazer crochet. Os olhos atraiçoam-na e os dias tornaram-se mais monótonos. Mas continua interessada por aquilo que vou fazendo, tem curiosidade em saber e em aprender e, sobretudo, esclarece as minhas dúvidas.

 

Também já não cozinha há bastante tempo. Custa-lhe estar de pé. Mas interessa-se por programas de culinária. Quando me apanha lá em casa informa-me logo que acabou de ver uma receita mesmo boa para eu fazer. E explica-me tudo tim tim por tim tim.


Dias depois pergunta-me “ Então a receita, já a experimentaste? Gostaram?


Mas qual receita??? Não faço a menor ideia!


A cabecinha da minha mãe funciona a 100% e irrita-se comigo porque sou uma cabeça no ar. E dá-me reprimendas como quando eu tinha 10 anos. E eu, menina obediente e temerosa, ouço, acato e… tenho que lhe dar razão. E sou eu que lhe peço para me lembrar das coisas que tenho para fazer…


Tudo isto para recordar o que por aqui já deixei escrito. A minha mãe é perfeita!


Já aqui fui partilhando no blog alguns dos seus trabalhos mais simples. Os mais complexos, trabalhosos e belíssimos tais como lençóis, toalhas, colchas ainda aguardam nas gavetas perfumadas o dia em que serão fotografados pelo “meu” fotógrafo oficial.


Mas estas habilidades nasceram com ela. Recorde-se o primeiro post deste blog.


Como os mais antigos devem saber e os mais jovens se não sabiam ficam agora informados,  há muitas, muitas décadas, os lavores faziam parte dos curricula do ensino primário. Para as meninas, bem entendido. Nos anos 30 era inconcebível um rapaz de agulha e linha na mão e dedal no dedo!   Mesmo agora sabe Deus, mas adiante. Isso daria para outra conversa.


Na escola primária a minha mãe fez inúmeros trabalhos e alguns deles resistiram à passagem do tempo. Sobreviveram. Alias, na casa dos meus avós e dos meus pais tudo era muito estimado, pois tudo custou a ganhar, tudo foi obtido com trabalho e sacrifício. E foi esse o princípio em que fui criada. Talvez por essa razão aprecie tanto o que é antigo. Carrega memórias e história. 

   
E é assim que cerca de 80 anos depois de terem sido feitas, estas almofadas bordadas pela minha mãe na escola primária, ainda continuam a fazer vista.


Ora digam-me lá, alguma menina de dez anos, nos dias de hoje bordaria assim?  


E como poderia ocupar o tempo uma criança dos anos trinta, sem televisão sem rádio, sem telemóvel, sem internet? Lia… bordava…

 

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Nada que o crochet não resolva

Era Inverno e fazia frio. Saí de casa com um blaser verde garrafa e um cachecol novinho, a estrear. Cor de laranja.


Gostei da combinação das cores contrastantes. E sentia-me toda contente com esta minha nova aquisição.


Quando cheguei a casa a recepção do costume. A Leila, a nossa cadela, festejou a minha chegada. Correu, rodopiou, foi buscar o brinquedo de estimação e saltou, saltou, saltou para cima de mim.  Haja quem fique feliz com a minha chegada e se manifeste tão exuberantemente. Ninguém, como os nossos animais de estimação, nos faz  sentir tão especiais e únicos. Podemos ausentarmo-nos dez minutos, dez dias ou dez semanas que     a recepção é sempre celebrada com a mesma alegria esfusiante.


Só que desta vez, os festejos não correram lá muito bem. Num dos saltos acrobáticos a Leila ficou com uma unha presa no meu cachecol novinho em folha.


E conseguir tirar a unha da malha? Foi o cabo dos trabalhos. Quanto mais a Leila se debatia para se libertar, mais presa ficava a unha na malha ou a malha mais se prendia à unha. Nem sei qual das duas situações seria mais exacta. O que sei é que cada vez eram   maiores os puxões. Temi o pior! Era o fim do meu rico cachecol!

 

Depois de muitos esforços lá  consegui desenfiar a unha. Mas o cachecol, coitado parecia um passador, com uma série de buracos de diversos tamanhos. Fiquei inconsolável.
Como disfarçar os estragos? Aconselhei-me com a minha mãe. As mães encontram sempre soluções para tudo.


-Traz cá o cachecol. Vamos lá ver o que consigo fazer!


E o dito lá viajou para a casa da minha mãe. Dias depois disse-me que estava pronto.


E o resultado aqui está. Quando voltei a usá-lo, foi um sucesso. Muitas amigas me perguntaram onde o tinha comprado. Queriam um igual     

 

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Sua excelência a cozinha

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A cozinha, de novo. A cozinha como coração da casa. Como ponto de encontro. Local de conversas, risos, histórias de família e até local de tomada de decisões importantes.

 

 A Cozinha da minha infância é um pouco de tudo isto. 

 

Eram assim as cozinhas dos meus avós, tios, primos. Quentes, aconchegantes, com grandes lareiras onde o lume crepitava e as chamas se destacavam nas paredes pretas de fuligem. Pequenos pontes de luz que se libertavam chaminé acima, lembrando pirilampos. Panelas de ferro fumegantes.

 

Cheirinho a comida boa. Envolvente. E todos nós ali sentados em redor do lume, reconfortados, dentro da grande chaminé.

 

 Eu a queimar a ponta de uma pequena cavaca e a minha avó a repreender-me:

 

-Não faças isso! Quem brinca com o fogo faz xixi na cama.  

 

E eu a acreditar. As avós nunca mentem. E parava. Não queria molhar a cama.

 

Depois vinham as histórias de lobisomens que a minha avó Clementina contava convictamente, como ninguém.

 

 A sua voz mudava, com pausas e entoações, quando contava pormenorizadamente histórias como a do homem que virou lobo à meia-noite e que, atacando um cavaleiro este feriu o lobo na focinho. No dia seguinte o homem que na noite anterior atacara cavalo e cavaleiro ostentava um grande ferimento na face.

 

O melhor destas histórias, é que os protagonistas eram todos conhecidos, tudo gente da terra, o que emprestava a todas estas narrações uma total veracidade, envolvimento e proximidade.

 

E eu ficava de tal forma dividida entre o fascínio e o terror que de noite não conseguia dormir.

 

Mas na noite seguinte pedia outra. E a minha avó lá começava a contar…

 

As cozinhas de hoje em nada se parecem com as da minha infância. São mais assépticas e luminosas do que as de antigamente. Poderão ter outro conforto e funcionalidade.

 

Mas procuro que a minha, embora tão mas tão diferente, continue a ser o coração da casa, ponto de encontro, local de aconchego, de partilha, não só de refeições mas de conversas e de histórias.

 

E nada melhor do que fazê-lo em redor de uma fumegante chávena de chá, sobre as toalhas com rendas feitas pela minha mãe.

 

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