O mais belo presente do mundo
Tinha a minha mãe os seus cinco ou seis anos quando recebeu de presente uma boneca de porcelana. Foi-lhe oferecida pela avó que um dia veio a Lisboa e a comprou na Feira da Ladra. Ao abrir a caixa a minha mãe ficou extasiada. Nunca tinha visto uma boneca tão linda como aquela. Sentiu-se a menina mais afortunada do mundo. Nem o Sr. Comendador lhe oferecera um presente assim.
Imediatamente a boneca, dentro da sua caixa, foi guardada dentro de um baú e este fechado à chave. Um presente daqueles não era para andar pela casa aos tombos nem à mão pouco cautelosa de uma criança. Só de tempos a tempos a minha mãe tinha ordem de ver a sua adorada boneca. Quando a mãe estava disposta a tal. Então a mãe abria o baú, retirava a caixa e levantava a tampa. A minha mãe recebia a boneca, sempre dentro da caixa e presa por atilhos. E embalava-a docemente. E contemplava-lhe embevecida a beleza do rosto. Admirava as faces rosadas, os olhos imensamente azuis, pestanudos, que abriam e fechavam. Os lábios sorriam docemente mostrando uns dentes pequeninos e muito brancos. E que deliciosa aquela covinha no queixo! Os anos foram passando, a minha mãe crescendo, e a boneca, a pouco e pouco, foi sendo cada vez menos visitada.
Até que, certa vez, já adulta, a minha mãe resolveu matar saudades da sua querida boneca. Abriu o baú, retirou a caixa, levantou a tampa… E um grito de terror ecoou pela casa! Toda a gente ocorreu ao grito da minha mãe…
Olharam para dentro da caixa e ficaram horrorizados! A bela boneca de porcelana tinha sido assassinada!!! O cabelo natural soltara-se da cabeça. A boneca estava careca! Os braços arrancados, os pés decapitados! O chapéu e o vestido completamente esburacados. Ninguém conseguia acreditar no que via. Retirou-se a boneca da caixa. Por baixo dela, minúsculos bichinhos roedores corriam de um lado para o outro. Estavam descobertos os assassinos.
A boneca foi limpa, arejada, colocada numa nova caixa. E não voltou a ser a mesma. Quando a conheci era já neste estado que se encontrava. Muito tempo se passou. Um dia, passando na Praça da Figueira, em Lisboa, a minha mãe reparou num letreiro na fachada de um prédio “Hospital das Bonecas”. Uma campainha tilintou-lhe na cabeça. Entrou. Ao balcão estava uma senhora.
A minha mãe pergunta - Aqui arranjam bonecas? - Só vendo! - respondeu a senhora do balcão. -Aaaaaahhhhh! – foi o som decepcionado que minha mãe conseguiu emitir.
Agradeceu e veio embora. Pelo caminho até casa pensava intrigada “mas como é possível só venderem bonecas se aquilo é um hospital???”. Não se dando por vencida, algum tempo depois voltou a passar por ali e resolveu entrar de novo. A mesma senhora ao balcão.
E de novo a mesma pergunta da minha mãe: - Aqui arranjam bonecas?
E, invariavelmente, a mesma resposta da senhora do balcão: - Só vendo!
Desta vez a minha mãe não se calou e comentou intrigada: - Mas como é que só vendem bonecas? Se é um hospital é suposto que as consertem!
- Não, não é isso. O que eu quero dizer é que precisamos de VER a boneca para decidirmos se tem arranjo! Quando digo “só vendo” é VENDO do verbo VER!!!
Desta vez o “ Aaaaaahhhh!” emitido pela minha mãe tinha uma sonoridade bem diferente. E fartaram-se de rir as duas pelo equívoco. Pouco tempo depois a moribunda boneca de porcelana deu entrada no hospital das bonecas. Saiu de lá como nova, ressuscitada, mas desvirtuada da sua antiguidade. A minha mãe e eu sentimo-nos algo defraudadas com o resultado. Não apreciámos o cabelo, muito menos o vestido. Mas antes assim, vivinha, do que esburacada e morta.