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Um ar de sua Graça

Lá vai uma, lá vão duas, três girafas a saltitar

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Foi quando passeava por uma rua de Chaves que a minha mãe viu numa montra um tecido que lhe chamou a atenção. Aproximou-se para ver melhor. Era de lã, azul-escuro, com girafas bordadas à máquina. Ficou rendida. E decidiu entrar. A dona da loja explicou-lhe que o tecido tinha sido bordado por ela e que só bordava poucos metros de cada peça. Porque dava muito trabalho, para não haver repetições e que variava os motivos de tecido para tecido. Mostrou-lhe outros que bordara, com motivos diferentes mas as girafas enfeitiçaram a minha mãe. Foi amor à primeira vista. E comprou o suficiente para me fazer uma saia de corpo. Por saia de corpo entenda-se uma saia com alças e peitilho.


Chamou a menina Quitas para me fazer a saia. A menina Quitas era uma costureira que vinha trabalhar a casa das clientes E foi muita a roupa que tive costurada por ela.
Também a menina Quitas se rendeu às girafas. Ficou encantada com elas e era grande o seu receio de cometer algum deslize na execução da saia. Algum ponto fora do sítio, ou pior a ainda, sem remédio, decapitar alguma girafa com a tesoura afiada.


Um dia apareceu lá em casa com olheiras, queixando-se:


- Sabem lá! Dormi tão mal! Só pesadelos! E o pesadelo foi sempre o mesmo a noite toda, sonhei que as girafas tinham fugido da saia. Passei a noite a correr atrás delas para as apanhar.  


Mas a saia concluiu-se sem sobressaltos. Sempre com as girafas bem alinhadas e bem comportadas na roda da saia. Naquele tempo a roupa era feita para durar e durar e durar. Com largas costuras e grandes bainhas. E a saia das girafas não fugiu à regra. Eu crescia e a saia foi crescendo comigo. As costuras iam-se alargando e a bainha ia descendo. Teria no máximo os meus quatro anos quando a saia ficou pronta e com dez já a caminho dos onze anos ainda a vestia. A data no verso da fotografia não deixa dúvidas.

 

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Quando a minha filha tinha os seus três, quatro anos, a saia das girafas saiu da arca onde se guardara e voltou à luz da ribalta. Desta vez seguiu-se o caminho inverso. Apertaram-se as costuras, subiu-se a bainha. E foram vários os invernos em que ela a vestiu. Depois… voltou à arca.


Teria a sua graça se a saia das girafas ainda viesse a vestir a terceira geração da família. Mas apressem-se filhos… antes que as girafas sejam devoradas pelas traças.

 

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O prazer de ler

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 Devo o gosto pela leitura ao meu pai e à Gulbenkian.  


Recordo a disponibilidade do meu pai para me ler histórias à noite, desde bem pequenina. Era um momento feliz. Só nosso. De grande cumplicidade entre ambos.


Morávamos em Pedrogão Grande. Tinha eu os meus quatro, cinco anos. À época não havia biblioteca pública nem livraria. Mas periodicamente surgia junto a capelinha de S. Sebastião a carrinha itinerante da Gulbenkian. O meu pai levava-me com ele. E requisitava livros para ele e para mim.


Aquela visita à carrinha cinzenta era uma festa. Adorava aquela casinha ambulante, toda forrada de livros por dentro, desde o chão até ao tecto. Um espaço pequenino mas tão bem aproveitado! Nunca tinha visto tantos livros juntos. E o cheiro? O cheiro dos livros misturado com o da madeira das estantes! E a simpatia dos dois senhores que traziam todo aquele mundo mágico até mim? Lembro-me particularmente de um deles, de cabelo e barbas brancas, bem velhinho. Pelo menos assim me parecia. Hoje interrogo-me se seria tão idoso como eu o recordo. Tratava-me com a bonomia de um avô.


E regressávamos a casa, o meu pai e eu, contentes com as aquisições que fizéramos e que nos iriam entreter durante alguns serões.


E, sentados lado a lado, o meu pai lia-me todas aquelas histórias que ainda hoje povoam o imaginário infantil.


E dizia-me que quando aprendesse a ler poderia ir sozinha requisitar os meus livros.


E assim foi.

 

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Mal consegui juntar as letras, obtive o meu primeiro cartão de leitora. Assinado com a minha ainda trémula e irregular assinatura. Achava-me a pessoa mais importante do mundo. Entrara no mundo dos crescidos.


Ir sozinha até ao largo onde a carrinha estacionava representava a liberdade, a autonomia. E um mundo onde não havia malfeitores, perseguidores de criancinhas, papões, perigos.Depois fomos viver para Odemira. Aí já existia uma biblioteca municipal. Pequenina e acolhedora. O responsável por ela era o senhor Manuel dos Reis, pai da minha amiga Luzinha.Íamos sempre em grupo, às sextas feira à tarde de quinze em quinze dias, se bem me recordo. As minhas amigas Isabel Flores, Ana Maria, Luzinha, Eduarda e eu.

 

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O senhor Manuel dos Reis tinha uma paciência infinita com este grupo de miúdas tagarelas, que mexiam e remexiam nos livros até se decidirem por aqueles que levariam para ler.  Com toda a afabilidade e simpatia orientava-nos, sempre que necessário, nas nossas escolhas. Era uma época em que lia compulsivamente. Até às escondidas dos meus pais, já de noite na cama, debaixo dos lençóis, quando eram horas de dormir e não de leituras.
Os meus livros preferidos do final da infância e pré-adolescência? As aventuras dos cinco de Enid Blyton, sem qualquer dúvida. Li toda a colecção. Não só li mas reli e reli e reli.


Com o Júlio, o David, a Ana, a Zé e o cão Tim eu sentia-me o sexto elemento do grupo. Com eles subi à torre mais alta do castelo da  Bela-Vista, tornei-me amiga da ciganita, transpus  amedrontada os tenebrosos portões da Casa do Mocho, percorri subterrâneos, trepei íngremes ravinas. Com eles persegui ladrões e contrabandistas, encontrei tesouros, resolvi os mais intrincados mistérios. Ah! E salivei com os deliciosos lanches preparados pela tia Clara.

 

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Tenho alguns destes livros que me foram oferecidos pelo meu pai. Quando os retiro da estante para lhes limpar o pó, revivo todas estas aventuras e é enorme o desejo de voltar a lê-los. Mas desisto e volto a colocá-los na estante.

 

É que não quero quebrar o encanto… 

 

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Um post politicamente incorrecto

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Nada de confusões! Não venho falar de política embora o título possa induzir em erro. Mas…

 

Pouco depois do 25 de Abril, sim refiro-me à revolução, muito boa gentinha procurava parecer o que não era. Se até aí tinham hábitos a que os revolucionários apelidavam de “burgueses”, como jantar em bons restaurantes, vestir roupa cara, usar belas jóias, procuraram disfarçadamente passar uma borracha sobre esse passado “comprometedor”.

 

Não querendo que lhes chamassem os nomes feios que na altura, a torto e a direito, se ouviam nas ruas, todos queriam ser, ou parecer do povo. Os homens abandonaram a camisa branca, a gravata, deixaram crescer o cabelo, a barba, o bigode. Um ar de desleixo caía bem. As senhoras guardaram as peles nos confins dos armários, esconderam as jóias, vestiram calças de ganga, camisas de flanela aos quadrados, compridonas, horrorosas e, pasme-se, calçavam socas com meias grossas!

 

Eu, que sempre gostei de me colocar à parte observando o comportamento humano, divertia-me imenso com  todas estas metamorfoses e  com este “antes” e “depois”. Ora acontece que, a dada altura, alguém se terá lembrado de sair à rua com um enorme xaile preto. Talvez numa imitação das velhinhas das aldeias que quando iam à missa ou à feira se embrulhavam em espessos xailes de lã.   E, de repente, virou moda. Era ver na rua, nos transportes, na faculdade jovens e senhoras de todas as idades embrulhadas nestes longos xailes de franjas compridas. Eram em croché, todos em abertos ou de abertos e fechados mas sem formarem qualquer desenho. Muito, muito simples.

 

Até lhes achei piada. Crochet era comigo! E decidi fazer um. Pareceu-me que seria uma boa ideia para usar nas madrugadas frias quando tinha aulas logo às 8 da manhã.Mas só de abertos ou de abertos e fechados sem formar qualquer desenhinho era demasiado simplista para a minha pessoa. E decidi dar-lhe um ar da minha graça. Pesquisei nas revistas “Para Ti” da minha mãe. E lá encontrei um esquema com uma barra de rosas e rosinhas mais pequenas no centro. Fi-lo em três tempos. Ficou engraçadinho.

 

Mal o acabei, lá vou eu bem enroladinha nele para a faculdade.

 

Então não é que me senti incomodada durante todo o dia? Como era demasiado grande tolhia-me os movimentos, o fio escolhido não era assim tão quente como imaginara e, acima de tudo, sentia-me como “ mais uma ovelha do rebanho”. Chegada a casa, o xaile foi parar a uma gaveta e nunca mais voltou a ver a rua… Lá ficou para sempre.

 

Ah! Minto! Foi usado uma vez pela minha filha, quando, na escola primária participou numa peça de teatro e desempenhava o papel de uma velhinha! Mas confesso, sempre gostei daquele motivo de rosas. Passei o esquema para papel quadriculado e iniciei há dias um novo xaile num fio bem mais fofo e quentinho.Espero vir a embrulhar-me nele nos serões de inverno a fazer crochet ou tricot…     

 

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