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Um ar de sua Graça

Um casaco feito a quatro mãos

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Há muito, muito tempo quando eu era criancinha, as lojas de pronto a vestir infantil eram praticamente inexistentes. Meninos e meninas andavam mais ou menos bem vestidos, com mais ou menos bom gosto, consoante as possibilidades económicas da família ou a habilidade das mães. As famílias abastadas contratavam bordadeiras, tricotadeiras, costureiras, que bordavam, tricotavam, costuravam as roupinhas das crianças.


A minha mãe não precisava de recorrer a ninguém. Ela bordava, ela tricotava, ela costurava. No entanto, por norma, recorria a costureiras para confeccionarem os vestidos, saias, casacos. Mas os pormenores eram com ela. E eu, modéstia à parte, andava sempre muito bem vestidinha, usava peças exclusivas e únicas que saíam da imaginação e das mãos da minha mãe.


Está neste caso este casaco de malha. Foi tricotado quando eu tinha dois anos. A minha mãe pretendia bordá-lo mas não havia em revista alguma desenhos que a motivassem. Ou porque não se adequavam à temática infantil ou porque eram demasiado grandes para um casaco tão pequeno. Desabafou com o meu pai a sua desilusão.


-Se não há motivos que te agradem para o casaco, então desenho-os eu!


Convém acrescentar que o meu pai até tinha jeitinho para desenhar e gostava de fazê-lo. E assim foi. O meu pai muniu-se de lápis e papel, a minha mãe foi dando ideias e, numa harmoniosa parceria, os desenhos foram nascendo, e a composição ficou definida. Depois, a fase seguinte pertenceu à minha mãe. Escolheu as lãs, as cores, ensaiou os pontos. E bordou o casaco.

 

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Conta a minha mãe que o meu pai, ao contrário do que era habitual, desta vez seguia atentamente todo o processo de execução do bordado. Encantava-se vendo nascer os pintainhos, o barco a navegar nas águas tranquilas, as velas do moinho que pareciam girar ao sabor do vento, o menino e a menina que estavam prestes a saltitar ao encontro um do outro para brincarem juntos. Esta obra era também um bocadinho dele.


Quando me via com ele vestido enchia-se de orgulho pela co-autoria. Usei o casaco até já não caber nele. Depois foi cuidadosamente guardado pela minha mãe que o envolveu em papel de seda, dentro de uma antiga arca onde continua até aos dias de hoje.

 

Apesar de muito velhinho, gosto muitíssimo dele e sempre que o olho sinto uma vontade enorme de tricotar e bordar um casaco inspirado nele. Mas não tenho netos… Enfim… fazendo o casaco já não falta tudo…!

 

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O mais belo presente do mundo

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Tinha a minha mãe os seus cinco ou seis anos quando recebeu de presente uma boneca de porcelana. Foi-lhe oferecida pela avó que um dia veio a Lisboa e a comprou na Feira da Ladra. Ao abrir a caixa a minha mãe ficou extasiada. Nunca tinha visto uma boneca tão linda como aquela. Sentiu-se a menina mais afortunada do mundo. Nem o Sr. Comendador lhe oferecera um presente assim.

 

Imediatamente a boneca, dentro da sua caixa, foi guardada dentro de um baú e este fechado à chave. Um presente daqueles não era para andar pela casa aos tombos nem à mão pouco cautelosa de uma criança. Só de tempos a tempos a minha mãe tinha ordem de ver a sua adorada boneca. Quando a mãe estava disposta a tal. Então a mãe abria o baú, retirava a caixa e levantava a tampa. A minha mãe recebia a boneca, sempre dentro da caixa e presa por atilhos. E embalava-a docemente. E contemplava-lhe embevecida a beleza do rosto. Admirava as faces rosadas, os olhos imensamente azuis, pestanudos, que abriam e fechavam. Os lábios sorriam docemente mostrando uns dentes pequeninos e muito brancos. E que deliciosa aquela covinha no queixo! Os anos foram passando, a minha mãe crescendo, e a boneca, a pouco e pouco, foi sendo cada vez menos visitada.

 

Até que, certa vez, já adulta, a minha mãe resolveu matar saudades da sua querida boneca. Abriu o baú, retirou a caixa, levantou a tampa… E um grito de terror ecoou pela casa! Toda a gente ocorreu ao grito da minha mãe…

 

Olharam para dentro da caixa e ficaram horrorizados! A bela boneca de porcelana tinha sido assassinada!!! O cabelo natural soltara-se da cabeça. A boneca estava careca! Os braços arrancados, os pés decapitados! O chapéu e o vestido completamente esburacados. Ninguém conseguia acreditar no que via. Retirou-se a boneca da caixa. Por baixo dela, minúsculos bichinhos roedores corriam de um lado para o outro. Estavam descobertos os assassinos.

 

A boneca foi limpa, arejada, colocada numa nova caixa. E não voltou a ser a mesma. Quando a conheci era já neste estado que se encontrava. Muito tempo se passou. Um dia, passando na Praça da Figueira, em Lisboa, a minha mãe reparou num letreiro na fachada de um prédio “Hospital das Bonecas”. Uma campainha tilintou-lhe na cabeça. Entrou. Ao balcão estava uma senhora.

 

A minha mãe pergunta - Aqui arranjam bonecas? - Só vendo! - respondeu a senhora do balcão. -Aaaaaahhhhh! – foi o som decepcionado que minha mãe conseguiu emitir.

 

Agradeceu e veio embora. Pelo caminho até casa pensava intrigada “mas como é possível só venderem bonecas se aquilo é um hospital???”. Não se dando por vencida, algum tempo depois voltou a passar por ali e resolveu entrar de novo. A mesma senhora ao balcão.

 

E de novo a mesma pergunta da minha mãe: - Aqui arranjam bonecas?

E, invariavelmente, a mesma resposta da senhora do balcão: - Só vendo!

 

Desta vez a minha mãe não se calou e comentou intrigada: - Mas como é que só vendem bonecas? Se é um hospital é suposto que as consertem!

- Não, não é isso. O que eu quero dizer é que precisamos de VER a boneca para decidirmos se tem arranjo! Quando digo “só vendo” é VENDO do verbo VER!!!

 

Desta vez o “ Aaaaaahhhh!” emitido pela minha mãe tinha uma sonoridade bem diferente. E fartaram-se de rir as duas pelo equívoco. Pouco tempo depois a moribunda boneca de porcelana deu entrada no hospital das bonecas. Saiu de lá como nova, ressuscitada, mas desvirtuada da sua antiguidade. A minha mãe e eu sentimo-nos algo defraudadas com o resultado. Não apreciámos o cabelo, muito menos o vestido. Mas antes assim, vivinha, do que esburacada e morta.

 

O primeiro brinquedo da minha mãe

Actualmente estão na ordem do dia as discussões mais ou menos acaloradas sobre se deve haver brinquedos para meninas e brinquedos para meninos, livros específicos para um género ou para outro, se as meninas devem vestir de cor-de-rosa e os meninos de azul.


Pois a minha mãe, há 91 anos, estava muito à frente. Porquê?

 

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Porque, pasme-se, este foi o seu primeiro brinquedo! Brinquedo para menina? Brinquedo para menino?


Uma coisa é certa! A ninguém restará dúvidas de que este é precisamente o brinquedo mais adequado para um bebé de poucos meses, seja menina ou menino!!!


Este cavalinho foi-lhe oferecido pelo Sr. Comendador. O Sr. Comendador era uma das pessoas mais ilustres da terra. O título com que foi agraciado assim o indica. Era senhor de muitos negócios, de muitos bens, de muita riqueza. Ora acontece que o Sr. Comendador precisava de se ausentar com muita frequência. Saía em negócios, para Lisboa e para o Brasil, saía em lazer para as termas ou para a Europa.  Durante a sua ausência era o meu avô António que lhe tratava dos seus muitos e variados assuntos burocráticos.


Quando regressava trazia sempre um presente para a minha mãe. Este foi o primeiro de muitos.


O brinquedo é feito em folha de Flandres e é de corda. E fez as delícias da minha mãe, que coitada, nunca teve ordem de lhe tocar. Era a mãe ou a avó que lhe davam corda e então… era vê-lo partir indomável, intrépido, endiabrado, em correria desenfreada, rodopiando velozmente, voltando para trás, empinando-se, não se sabendo ao certo se era o cavaleiro que conduzia o cavalo se era o cavalo que conduzia o cavaleiro.


Também eu, em criança me diverti com ele… mas a história repetiu-se. A minha mãe dava-lhe corda e eu assistia perfeitamente maravilhada às façanhas deste cavalito. Tocar-lhe? Nem me atrevia! Se estendia a mão para o agarrar, sentia o olhar da minha mãe sobre mim, semelhante a alfinetadas, e a mão retraia-se de imediato. O cavalo também desde logo chamou a atenção dos meus filhos. Começaram por espreitá-lo na vitrine onde a minha mãe muito ciosa daquela relíquia, ainda hoje o guarda. Quando pediam para pô-lo a cavalgar pelo chão da sala, eu nem me atrevia a fazê-lo. Não fosse eu estragar algo tão religiosamente protegido ao longo dos tempos. Eram, ora o meu pai, ora  a minha mãe a fazê-lo.


Porque, todos nós, de geração em geração, não tivemos ordem de lhe pôr a mão durante a infância, ele chegou aos nossos dias em bom estado.


Até que um dia, não há muito tempo, inexplicavelmente, a corda partiu-se e o cavalinho imobilizou-se para sempre.


Ainda hoje, quando fiz algumas perguntas à minha mãe sobre o seu primeiro brinquedo para escrever este post, vislumbrei uma expressão triste no seu olhar e desabafou:


-Tenho tanta pena que ele já não possa correr!