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Um ar de sua Graça

Como os primeiros se podem tornar os últimos

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Quando aprendi a bordar a ponto de cruz e comprei a primeira revista, este Pai Natal chamou-me logo a atenção. Fiquei encantada com ele e de imediato decidi que iria ser a minha primeira obra. Os meus filhos, ainda pequenos, iriam ficar felizes por vê-lo a decorar a casa na quadra natalícia.


Mas o Natal ainda vinha tão longe que resolvi bordar primeiro um quadro para o quarto da minha filha. Faltavam tantos meses, iria ter tempo para tudo.


Mas a gestão do tempo nunca foi o meu ponto forte. Chegou o Natal…. E o quadro da minha filha por acabar.


O Pai Natal podia esperar mais um anito…


Quadro terminado.


Tccchhhiiiii! Faltava tanto para o próximo Natal!


Dava tempo para fazer outro quadrito para o quarto da miúda. É que um quadro só na parede dava assim um ar de coisa abandonada.


E chegou outro Natal…


 O Pai Natal continuava a esperar pacientemente escondido entre as páginas da revista.  


Ao todo fiz cinco quadros para o quarto da pequena. Na parede faziam uma composição engraçada. Predominavam os tons de rosa, a cor que a minha filha preferia quando era criança.


E vários Natais se passaram…


 E o Pai Natal continuava a aguardar pacientemente a sua vez.


Depois mudámos de casa.


 A cozinha com uma barra em azul estava mesmo a pedir uns quadros nesta tonalidade.
 E bordei quatro quadros que ainda por lá estão. (É verdade, eu que já andei por aqui a postar rendas e bordados da cozinha, esqueci-me dos quadros a ponto de cruz. Qualquer dia por aqui aparecerão).
Depois seguiram-se os quadros alusivos ao meu casamento e ao dos meus pais. Mais alguns que bordei para oferecer a amigas.


E o Pai Natal esperando…


Depois… o entusiasmo pelo ponto de cruz foi esmorecendo…
É que os meus olhos pediam clemência. Aquele quadrilé fino com aqueles buraquinhos invisíveis deixavam-me atordoada e com dores de cabeça monumentais.


Esqueci o Pai Natal…


Há alguns anos volto a folhear a revista e lá continuava o Pai Natal de saco às costas carregadinho de prendas. Olhava-me com um ar levemente irritado. Afinal as promessas são para cumprir e eu falhara.
 Quem promete e não cumpre vai para o inferno! E com coisas sérias não se brinca. E promessas ao Pai Natal são para levar mesmo, mesmo a sério.


Falhara com ele e com os meus filhos que, agora já adultos, nunca tiveram o prometido Pai Natal a colorir as festas natalícias da sua infância. Senti-me em dívida para com ele e para com os filhos. Mas as dívidas podem ser pagas e as promessas podem ser cumpridas. Fui à retrosaria e pedi o quadrilé com os maiores quadradinhos que lá houvesse e comprei linha de bordar adequada.


E lá comecei a minha obra.


Entusiasmei-me e bordei-o em três tempos, ora piscando o olho direito, ora piscando o olho esquerdo, lacrimejando. Vendo tudo enevoado! Muitas dores de cabeça à mistura. Mas nada me tirou o prazer de o bordar.  Depois de emoldurado passou a fazer parte dos nossos Natais. Há uns quatro ou cinco anos.

 

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Há relativamente pouco tempo ainda me enchi de boa vontade e comecei a bordar um presépio. Muito simples. Mas onde estavam os quadradinhos e os buraquinhos para enfiar a agulha?!


Nem vê-los! E desta vez nem o Menino Jesus me valeu.

 

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A Alzira

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A Alzira era uma velha amiga da minha mãe. Conheciam-se desde crianças.

 

O pai era padeiro e, de menina, a Alzira começou a ajudar a família distribuindo o pão pelas mercearias da vila. Quando chegava junto da minha mãe pedia-lhe lápis e papel e, em meia dúzia de traços, satisfazia a sua urgente necessidade de criar. A minha mãe guardou alguns desses desenhos e lembro-me de, entre eles, do retrato que fez da Beatriz Costa. Estava tal e qual, feito assim de memória, mas com um traço original, único e inconfundível. A minha mãe guardou-os por muito tempo mas, inexplicavelmente, esses desenhos perderam-se nalguma limpeza mais profunda. Infelizmente.

 

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A Alzira casou e foi viver para Lisboa. Fazia trabalhos de costura.

 

Depois de enviuvar regressou à terra e foi então que a conheci. Apesar de apenas ter concluído a quarta classe era uma mulher culta, sensível, de mente aberta e à frente do seu tempo. E passei a admirá-la profundamente. Visitá-la era um prazer. Era um prazer conversar com ela e observá-la no seu espaço, criado à sua imagem e semelhança.

 

Gostava de levar comigo os meus filhos que aprenderam também a apreciá-la. Tinha sempre um miminho para eles, um fóssil, uma pequena pedra que lembrava um animal. E eles ficavam felizes.  

 

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A Alzira em tudo descobria beleza. Numa pequena pedra, num tronco retorcido, numa planta singela. Levava-os para casa e estes materiais tão simples transformavam-se em obras de arte. Como uma pedra que tinha no parapeito da janela. Colou-lhe um pequeno botão a fazer de olho e a pedra transformou-se num coelho pronto a saltar para o nosso colo.

 

E a casa da Alzira? Tão simples por fora como por dentro mas tão única! Única na concepção do espaço, nas peças antigas que a decoravam, nos quadros do filho, artista plástico, e nas peças criadas por ela.

 

 E as peças criadas pela Alzira? Com tecidos, agulhas, linhas, lãs, rendas e botões antigos, saíam peças inimagináveis. E que peças! Colchas, almofadas, bonecos, painéis… eu sei lá!

 

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Certa vez, para um concurso de montras decoradas com motivos de Natal, a Alzira fez um presépio absolutamente fabuloso com dezenas de peças. Um presépio em pano em que as personagens surgiam decoradas com rendas, bordados, missangas, pequeninos botões. Uma obra de arte. Estava tão lindo que a Câmara Municipal decidiu comprá-lo. O mesmo sucedeu com um casamento com perto de uma centena de figuras, desde noivos, padrinhos, menina das alianças e convidados, muitos convidados.

 

Pena é que ambos, presépio e casamento, não estejam expostos no Museu Municipal. Mereciam estar ao dispor de todos os que apreciam estas artes e seria uma justa homenagem a esta artesã da terra a quem a Câmara Municipal tanto gostava de recorrer quando pretendia presentear algum ilustre visitante. Espero bem que não tenham sido comidos pelas traças…   

 

A Alzira não precisava de revistas ou livros para se inspirar. Muito menos de internet, que ainda não estava acessível no seu tempo.

 

Certo dia perguntei-lhe onde ia buscar tanta inspiração. Respondeu-me:

 

-Olho ali para aquela parede branca e vejo lá tanta coisa!

 

Depois era só por mãos à obra…  

 

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A minha avó Clementina

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A minha avó Clementina teve uma vida longa. Nasceu quando reinava D. Carlos e quando faleceu eu já tinha 45 anos. Depois de ter faltado 2 dias para assistir ao seu funeral, uns alunos interpelaram-me incrédulos:


- Imagine que nos disseram que a professora foi ao funeral da sua avó! Mas não pode ser! Isso não é possível!


Respondi que sim, que era possível, que era verdade. Abriram-se bocas de espanto. Para miúdos de 11, 12 anos, uma pessoa de 45 está praticamente fossilizada, como é que podia ainda ter avó???!!! Continuavam a olhar-me desconfiados.


-Não pode trazer uma fotografia dela para nós vermos? – perguntou uma miúda mais espevitada.


E no dia seguinte, para que as dúvidas se dissipassem, levei uma foto onde ambas posávamos, a minha avó de olhos sorridentes e expressão prazenteira. Só assim se convenceram.


Foi então que lancei mais uma acha para a fogueira ao informá-los que tinha ainda outra avó, mas esta, graças a Deus, estava viva e benzinho de saúde. Ainda se abriram algumas bocas, ouviram-se alguns “ahs” de surpresa mas já ninguém ousou manifestar-se. Perceberam que daqui tudo se podia esperar!


A minha avó Clementina era a mais nova de quatro irmãos. Os três mais velhos nunca frequentaram a escola. Mas a minha avó tanto suplicou, tanto implorou que lá a deixaram ir fazer a instrução primária que, naquela época, primeiros anos da 1ª República , era de três anos.


Sempre a ouvi falar daqueles três anos como o que de mais maravilhoso lhe acontecera. E os livros por onde aprendeu a ler, a escrever e a contar foram sempre por ela guardados como se de algo sagrado se tratasse. E ainda existem religiosamente acautelados por nós. Como é de calcular, numa época em que a taxa de analfabetismo em Portugal era elevadíssima, a maioria das amigas da minha avó não sabia ler nem escrever. Muitas delas tinham filhos emigrados. Como saber notícias deles?


Uma amiga lembrou-se de pedir à minha avó que lhe lesse as cartas recebidas e lhes desse resposta. E atrás desta amiga outras vieram. Em certos dias a casa parecia um escritório de “import e export”. E eu, miúda, observava com curiosidade. A leitura das cartas, as novidades, a lágrima ao canto do olho pela saudade, os risos pelas traquinices dos netos que mal se conheciam. Depois, era ditada a carta de resposta que a minha avó escrevia meticulosamente com a sua caligrafia miudinha e perfeita. E a minha avó tornou-se, assim, a fiel depositária de alegrias, tristezas, confidências, segredos, vividos por ela com a mesma intensidade como se da sua família se tratasse.


Mas não era só a sua caligrafia que era perfeita.


Onde punha as mãos tudo saia bem. Como nunca viveu na abundância habituou-se a poupar e tudo aproveitar. Nas mãos dela o lixo tornava-se luxo, como hoje se costuma dizer. Dos sacos da farinha fazia guardanapos e panos da loiça.


De tecidos velhos e sobras de lã fazia tapetes bordados usando formas mandadas fazer no latoeiro, nos tamanhos pretendidos.

 

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Presentemente, como já não temos um latoeiro ao virar da esquina, podemos fazer os moldes em cartão, tal como eu fiz, para um tapete que estou a tentar bordar. Na foto poderão ver a técnica usada.

 

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Com sobras de tecidos e linhas de bordar fazia estas almofadas. Ela recortava, caseava, inventava os desenhos e bordava-os. Acho-as adoráveis, tanto mais que me lembro da minha avó a bordá-las com ar entusiasmado e concentrado, com a língua ao canto da boca como fazem as crianças quando estão entretidas a desenhar.

 

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Umas almofadas muito, muito velhinhas

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Muito recentemente a minha mãe fez 91 anos. Há poucos meses deixou de fazer crochet. Os olhos atraiçoam-na e os dias tornaram-se mais monótonos. Mas continua interessada por aquilo que vou fazendo, tem curiosidade em saber e em aprender e, sobretudo, esclarece as minhas dúvidas.

 

Também já não cozinha há bastante tempo. Custa-lhe estar de pé. Mas interessa-se por programas de culinária. Quando me apanha lá em casa informa-me logo que acabou de ver uma receita mesmo boa para eu fazer. E explica-me tudo tim tim por tim tim.


Dias depois pergunta-me “ Então a receita, já a experimentaste? Gostaram?


Mas qual receita??? Não faço a menor ideia!


A cabecinha da minha mãe funciona a 100% e irrita-se comigo porque sou uma cabeça no ar. E dá-me reprimendas como quando eu tinha 10 anos. E eu, menina obediente e temerosa, ouço, acato e… tenho que lhe dar razão. E sou eu que lhe peço para me lembrar das coisas que tenho para fazer…


Tudo isto para recordar o que por aqui já deixei escrito. A minha mãe é perfeita!


Já aqui fui partilhando no blog alguns dos seus trabalhos mais simples. Os mais complexos, trabalhosos e belíssimos tais como lençóis, toalhas, colchas ainda aguardam nas gavetas perfumadas o dia em que serão fotografados pelo “meu” fotógrafo oficial.


Mas estas habilidades nasceram com ela. Recorde-se o primeiro post deste blog.


Como os mais antigos devem saber e os mais jovens se não sabiam ficam agora informados,  há muitas, muitas décadas, os lavores faziam parte dos curricula do ensino primário. Para as meninas, bem entendido. Nos anos 30 era inconcebível um rapaz de agulha e linha na mão e dedal no dedo!   Mesmo agora sabe Deus, mas adiante. Isso daria para outra conversa.


Na escola primária a minha mãe fez inúmeros trabalhos e alguns deles resistiram à passagem do tempo. Sobreviveram. Alias, na casa dos meus avós e dos meus pais tudo era muito estimado, pois tudo custou a ganhar, tudo foi obtido com trabalho e sacrifício. E foi esse o princípio em que fui criada. Talvez por essa razão aprecie tanto o que é antigo. Carrega memórias e história. 

   
E é assim que cerca de 80 anos depois de terem sido feitas, estas almofadas bordadas pela minha mãe na escola primária, ainda continuam a fazer vista.


Ora digam-me lá, alguma menina de dez anos, nos dias de hoje bordaria assim?  


E como poderia ocupar o tempo uma criança dos anos trinta, sem televisão sem rádio, sem telemóvel, sem internet? Lia… bordava…

 

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