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Um ar de sua Graça

A Páscoa não tarda aí

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À excepção do Natal nunca tive o hábito de decorar a casa de acordo com as épocas, quadras, ou estações do ano.


As minhas prioridades e interesses eram outros e não tinha qualquer disponibilidade para pensar no assunto.


Relativamente à época pascal limitava-me a espalhar amêndoas e ovos de chocolate   colocados em pequenas taças ou frascos de vidro. Coloriam a sala. Alegravam os miúdos.


Depois, o ritmo frenético da vida abrandou. Os compromissos imperiosos, os prazos definidos para ontem cessaram. Surgiram outras prioridades, algumas não menos absorventes e não menos prementes.


E neste meu universo por vezes um pouco opaco vou procurando rasgar pequenas janelas que tragam luz ao meu horizonte.
Os momentos de calma e de bem-estar encontro-os nas agulhas e linhas, enquanto vou criando pequenos projectos que me inspiram e, principalmente, me divertem. E dizem os entendidos que o crochet e o tricot são essenciais para que nos mantenhamos saudáveis quer física quer emocionalmente e que aumentam a nossa produtividade e agilidade mental.  


Quero crer que assim seja!


E assim, todos os pretextos são bons para pôr as mãos na massa ou, dizendo por outras palavras, para por as mãos nas agulhas e nas linhas.
Um painel em crochet simbolizando o Outono, uma manta em lã para aconchego no Inverno, outra em fio de algodão para refrescar a cama no Verão, almofadas em tricot e crochet para o conforto no sofá, foram pequenos trabalhos que foram nascendo das minhas mãos.  


A casa ganha cor e renova-se. Foge-se à monotonia de ver sempre o mesmo, sempre tudo igual e no mesmo sítio.


A Páscoa não tarda aí. E pela primeira vez, esta quadra foi motivo de inspiração. Transformei-me em galinha poedeira e nestes últimos dias foram vários os ovos que fui pondo pela casa. Mais uns passaritos por aqui mais um coelhito por ali e a decoração vai ganhando forma. Nunca está concluída. Cada dia vai surgindo algo de novo. Ao sabor da imaginação.


E assim se vai aliando o sagrado e o profano nas celebrações pascais cá de casa.

 

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A prima Josseline

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A prima Josseline não era nossa prima. Era prima de uma prima da minha avó. A prima Jusseline era viúva, vivia em Coimbra e vinha passar temporadas à terra a casa da prima. Da prima verdadeira. Foi aí, em casa da prima em comum que a minha avó e ela se conheceram. Ficaram amigas… e primas.


Quando conheci a prima Josseline era eu bem miúda. Quando a via ficava como que hipnotizada, não conseguindo desviar os olhos dela. A aparência dela e a sua atitude não deixavam ninguém indiferente.


Era pequena e magra. Cabelo grisalho impecavelmente penteado e preso num carrapito. Rosto comprido e enrugado. Olhos pequenos, muito vivos, míopes. Óculos de aros redondos e dourados encavalitados no nariz adunco.


E as toilettes? Ah, as toilettes! Usava sempre blusas brancas ou de cor clara, de mangas compridas e bem ajustadas nos pulsos. Tinham nervuras ou pequenas rendas ou uma fiada de pequenos botões forrados ou de madrepérola. Sempre muito bem engomadas. As saias eram compridas, pretas, até aos tornozelos. E um cinto cingia a cintura fina. Normalmente vestia por cima um casaco comprido, preto.


Nos pés pequeninos calçava sapatos de camurça com salto elegante. Na mão uma pequena malinha.


Mas o charme de todos charmes residia em dois acessórios que eu não via usar em mais ninguém e que  considerava serem o expoente máximo da elegância: a prima Josseline nunca saía à rua sem um elegante chapéu preto na cabeça. E mais, ao pescoço usava sempre, mas sempre uma fitinha de veludo preto, bem ajustada, onde espetava um grande medalhão. Era a sua imagem de marca.


Absolutamente fascinante!


De tal maneira eu achava aquela fita de veludo o que de mais requintado vira até então que resolvi pedir à minha avó que me arranjasse uma fita igual. Cosi-lhe um colchete, colei-lhe uma latinha redonda que encontrei algures e eis-me pronta para brincar às senhoras finas e elegantes com as minhas bonecas.


A prima Josseline com a sua personalidade austera fazia-me lembrar as preceptoras inglesas dos filmes e livros antigos que retratavam uma época bem longínqua.
Por vezes a prima Josseline visitava a minha avó. Eu não saía de junto delas, sentada muito sossegada a observar os seus modos, os seus trejeitos, os seus gestos delicados. E divertia-me ao vê-la pegar na asa da chávena de chá com o dedo mindinho bem espetado. Até este gesto eu imitava nas minhas brincadeiras.


A prima Josseline parecia saída daqueles figurinos do princípio do século. Do século vinte, bem entendido.


Tenho pena de não ter uma fotografia dela e pena, muita pena de não ter jeito para desenhar. Ah! Como eu gostaria de registar numa folha de papel a imagem que mantenho na memória desta senhora tão singular.

Lá vai uma, lá vão duas, três girafas a saltitar

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Foi quando passeava por uma rua de Chaves que a minha mãe viu numa montra um tecido que lhe chamou a atenção. Aproximou-se para ver melhor. Era de lã, azul-escuro, com girafas bordadas à máquina. Ficou rendida. E decidiu entrar. A dona da loja explicou-lhe que o tecido tinha sido bordado por ela e que só bordava poucos metros de cada peça. Porque dava muito trabalho, para não haver repetições e que variava os motivos de tecido para tecido. Mostrou-lhe outros que bordara, com motivos diferentes mas as girafas enfeitiçaram a minha mãe. Foi amor à primeira vista. E comprou o suficiente para me fazer uma saia de corpo. Por saia de corpo entenda-se uma saia com alças e peitilho.


Chamou a menina Quitas para me fazer a saia. A menina Quitas era uma costureira que vinha trabalhar a casa das clientes E foi muita a roupa que tive costurada por ela.
Também a menina Quitas se rendeu às girafas. Ficou encantada com elas e era grande o seu receio de cometer algum deslize na execução da saia. Algum ponto fora do sítio, ou pior a ainda, sem remédio, decapitar alguma girafa com a tesoura afiada.


Um dia apareceu lá em casa com olheiras, queixando-se:


- Sabem lá! Dormi tão mal! Só pesadelos! E o pesadelo foi sempre o mesmo a noite toda, sonhei que as girafas tinham fugido da saia. Passei a noite a correr atrás delas para as apanhar.  


Mas a saia concluiu-se sem sobressaltos. Sempre com as girafas bem alinhadas e bem comportadas na roda da saia. Naquele tempo a roupa era feita para durar e durar e durar. Com largas costuras e grandes bainhas. E a saia das girafas não fugiu à regra. Eu crescia e a saia foi crescendo comigo. As costuras iam-se alargando e a bainha ia descendo. Teria no máximo os meus quatro anos quando a saia ficou pronta e com dez já a caminho dos onze anos ainda a vestia. A data no verso da fotografia não deixa dúvidas.

 

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Quando a minha filha tinha os seus três, quatro anos, a saia das girafas saiu da arca onde se guardara e voltou à luz da ribalta. Desta vez seguiu-se o caminho inverso. Apertaram-se as costuras, subiu-se a bainha. E foram vários os invernos em que ela a vestiu. Depois… voltou à arca.


Teria a sua graça se a saia das girafas ainda viesse a vestir a terceira geração da família. Mas apressem-se filhos… antes que as girafas sejam devoradas pelas traças.

 

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O prazer de ler

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 Devo o gosto pela leitura ao meu pai e à Gulbenkian.  


Recordo a disponibilidade do meu pai para me ler histórias à noite, desde bem pequenina. Era um momento feliz. Só nosso. De grande cumplicidade entre ambos.


Morávamos em Pedrogão Grande. Tinha eu os meus quatro, cinco anos. À época não havia biblioteca pública nem livraria. Mas periodicamente surgia junto a capelinha de S. Sebastião a carrinha itinerante da Gulbenkian. O meu pai levava-me com ele. E requisitava livros para ele e para mim.


Aquela visita à carrinha cinzenta era uma festa. Adorava aquela casinha ambulante, toda forrada de livros por dentro, desde o chão até ao tecto. Um espaço pequenino mas tão bem aproveitado! Nunca tinha visto tantos livros juntos. E o cheiro? O cheiro dos livros misturado com o da madeira das estantes! E a simpatia dos dois senhores que traziam todo aquele mundo mágico até mim? Lembro-me particularmente de um deles, de cabelo e barbas brancas, bem velhinho. Pelo menos assim me parecia. Hoje interrogo-me se seria tão idoso como eu o recordo. Tratava-me com a bonomia de um avô.


E regressávamos a casa, o meu pai e eu, contentes com as aquisições que fizéramos e que nos iriam entreter durante alguns serões.


E, sentados lado a lado, o meu pai lia-me todas aquelas histórias que ainda hoje povoam o imaginário infantil.


E dizia-me que quando aprendesse a ler poderia ir sozinha requisitar os meus livros.


E assim foi.

 

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Mal consegui juntar as letras, obtive o meu primeiro cartão de leitora. Assinado com a minha ainda trémula e irregular assinatura. Achava-me a pessoa mais importante do mundo. Entrara no mundo dos crescidos.


Ir sozinha até ao largo onde a carrinha estacionava representava a liberdade, a autonomia. E um mundo onde não havia malfeitores, perseguidores de criancinhas, papões, perigos.Depois fomos viver para Odemira. Aí já existia uma biblioteca municipal. Pequenina e acolhedora. O responsável por ela era o senhor Manuel dos Reis, pai da minha amiga Luzinha.Íamos sempre em grupo, às sextas feira à tarde de quinze em quinze dias, se bem me recordo. As minhas amigas Isabel Flores, Ana Maria, Luzinha, Eduarda e eu.

 

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O senhor Manuel dos Reis tinha uma paciência infinita com este grupo de miúdas tagarelas, que mexiam e remexiam nos livros até se decidirem por aqueles que levariam para ler.  Com toda a afabilidade e simpatia orientava-nos, sempre que necessário, nas nossas escolhas. Era uma época em que lia compulsivamente. Até às escondidas dos meus pais, já de noite na cama, debaixo dos lençóis, quando eram horas de dormir e não de leituras.
Os meus livros preferidos do final da infância e pré-adolescência? As aventuras dos cinco de Enid Blyton, sem qualquer dúvida. Li toda a colecção. Não só li mas reli e reli e reli.


Com o Júlio, o David, a Ana, a Zé e o cão Tim eu sentia-me o sexto elemento do grupo. Com eles subi à torre mais alta do castelo da  Bela-Vista, tornei-me amiga da ciganita, transpus  amedrontada os tenebrosos portões da Casa do Mocho, percorri subterrâneos, trepei íngremes ravinas. Com eles persegui ladrões e contrabandistas, encontrei tesouros, resolvi os mais intrincados mistérios. Ah! E salivei com os deliciosos lanches preparados pela tia Clara.

 

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Tenho alguns destes livros que me foram oferecidos pelo meu pai. Quando os retiro da estante para lhes limpar o pó, revivo todas estas aventuras e é enorme o desejo de voltar a lê-los. Mas desisto e volto a colocá-los na estante.

 

É que não quero quebrar o encanto… 

 

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Um post politicamente incorrecto

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Nada de confusões! Não venho falar de política embora o título possa induzir em erro. Mas…

 

Pouco depois do 25 de Abril, sim refiro-me à revolução, muito boa gentinha procurava parecer o que não era. Se até aí tinham hábitos a que os revolucionários apelidavam de “burgueses”, como jantar em bons restaurantes, vestir roupa cara, usar belas jóias, procuraram disfarçadamente passar uma borracha sobre esse passado “comprometedor”.

 

Não querendo que lhes chamassem os nomes feios que na altura, a torto e a direito, se ouviam nas ruas, todos queriam ser, ou parecer do povo. Os homens abandonaram a camisa branca, a gravata, deixaram crescer o cabelo, a barba, o bigode. Um ar de desleixo caía bem. As senhoras guardaram as peles nos confins dos armários, esconderam as jóias, vestiram calças de ganga, camisas de flanela aos quadrados, compridonas, horrorosas e, pasme-se, calçavam socas com meias grossas!

 

Eu, que sempre gostei de me colocar à parte observando o comportamento humano, divertia-me imenso com  todas estas metamorfoses e  com este “antes” e “depois”. Ora acontece que, a dada altura, alguém se terá lembrado de sair à rua com um enorme xaile preto. Talvez numa imitação das velhinhas das aldeias que quando iam à missa ou à feira se embrulhavam em espessos xailes de lã.   E, de repente, virou moda. Era ver na rua, nos transportes, na faculdade jovens e senhoras de todas as idades embrulhadas nestes longos xailes de franjas compridas. Eram em croché, todos em abertos ou de abertos e fechados mas sem formarem qualquer desenho. Muito, muito simples.

 

Até lhes achei piada. Crochet era comigo! E decidi fazer um. Pareceu-me que seria uma boa ideia para usar nas madrugadas frias quando tinha aulas logo às 8 da manhã.Mas só de abertos ou de abertos e fechados sem formar qualquer desenhinho era demasiado simplista para a minha pessoa. E decidi dar-lhe um ar da minha graça. Pesquisei nas revistas “Para Ti” da minha mãe. E lá encontrei um esquema com uma barra de rosas e rosinhas mais pequenas no centro. Fi-lo em três tempos. Ficou engraçadinho.

 

Mal o acabei, lá vou eu bem enroladinha nele para a faculdade.

 

Então não é que me senti incomodada durante todo o dia? Como era demasiado grande tolhia-me os movimentos, o fio escolhido não era assim tão quente como imaginara e, acima de tudo, sentia-me como “ mais uma ovelha do rebanho”. Chegada a casa, o xaile foi parar a uma gaveta e nunca mais voltou a ver a rua… Lá ficou para sempre.

 

Ah! Minto! Foi usado uma vez pela minha filha, quando, na escola primária participou numa peça de teatro e desempenhava o papel de uma velhinha! Mas confesso, sempre gostei daquele motivo de rosas. Passei o esquema para papel quadriculado e iniciei há dias um novo xaile num fio bem mais fofo e quentinho.Espero vir a embrulhar-me nele nos serões de inverno a fazer crochet ou tricot…     

 

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Um casaco feito a quatro mãos

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Há muito, muito tempo quando eu era criancinha, as lojas de pronto a vestir infantil eram praticamente inexistentes. Meninos e meninas andavam mais ou menos bem vestidos, com mais ou menos bom gosto, consoante as possibilidades económicas da família ou a habilidade das mães. As famílias abastadas contratavam bordadeiras, tricotadeiras, costureiras, que bordavam, tricotavam, costuravam as roupinhas das crianças.


A minha mãe não precisava de recorrer a ninguém. Ela bordava, ela tricotava, ela costurava. No entanto, por norma, recorria a costureiras para confeccionarem os vestidos, saias, casacos. Mas os pormenores eram com ela. E eu, modéstia à parte, andava sempre muito bem vestidinha, usava peças exclusivas e únicas que saíam da imaginação e das mãos da minha mãe.


Está neste caso este casaco de malha. Foi tricotado quando eu tinha dois anos. A minha mãe pretendia bordá-lo mas não havia em revista alguma desenhos que a motivassem. Ou porque não se adequavam à temática infantil ou porque eram demasiado grandes para um casaco tão pequeno. Desabafou com o meu pai a sua desilusão.


-Se não há motivos que te agradem para o casaco, então desenho-os eu!


Convém acrescentar que o meu pai até tinha jeitinho para desenhar e gostava de fazê-lo. E assim foi. O meu pai muniu-se de lápis e papel, a minha mãe foi dando ideias e, numa harmoniosa parceria, os desenhos foram nascendo, e a composição ficou definida. Depois, a fase seguinte pertenceu à minha mãe. Escolheu as lãs, as cores, ensaiou os pontos. E bordou o casaco.

 

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Conta a minha mãe que o meu pai, ao contrário do que era habitual, desta vez seguia atentamente todo o processo de execução do bordado. Encantava-se vendo nascer os pintainhos, o barco a navegar nas águas tranquilas, as velas do moinho que pareciam girar ao sabor do vento, o menino e a menina que estavam prestes a saltitar ao encontro um do outro para brincarem juntos. Esta obra era também um bocadinho dele.


Quando me via com ele vestido enchia-se de orgulho pela co-autoria. Usei o casaco até já não caber nele. Depois foi cuidadosamente guardado pela minha mãe que o envolveu em papel de seda, dentro de uma antiga arca onde continua até aos dias de hoje.

 

Apesar de muito velhinho, gosto muitíssimo dele e sempre que o olho sinto uma vontade enorme de tricotar e bordar um casaco inspirado nele. Mas não tenho netos… Enfim… fazendo o casaco já não falta tudo…!

 

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O mais belo presente do mundo

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Tinha a minha mãe os seus cinco ou seis anos quando recebeu de presente uma boneca de porcelana. Foi-lhe oferecida pela avó que um dia veio a Lisboa e a comprou na Feira da Ladra. Ao abrir a caixa a minha mãe ficou extasiada. Nunca tinha visto uma boneca tão linda como aquela. Sentiu-se a menina mais afortunada do mundo. Nem o Sr. Comendador lhe oferecera um presente assim.

 

Imediatamente a boneca, dentro da sua caixa, foi guardada dentro de um baú e este fechado à chave. Um presente daqueles não era para andar pela casa aos tombos nem à mão pouco cautelosa de uma criança. Só de tempos a tempos a minha mãe tinha ordem de ver a sua adorada boneca. Quando a mãe estava disposta a tal. Então a mãe abria o baú, retirava a caixa e levantava a tampa. A minha mãe recebia a boneca, sempre dentro da caixa e presa por atilhos. E embalava-a docemente. E contemplava-lhe embevecida a beleza do rosto. Admirava as faces rosadas, os olhos imensamente azuis, pestanudos, que abriam e fechavam. Os lábios sorriam docemente mostrando uns dentes pequeninos e muito brancos. E que deliciosa aquela covinha no queixo! Os anos foram passando, a minha mãe crescendo, e a boneca, a pouco e pouco, foi sendo cada vez menos visitada.

 

Até que, certa vez, já adulta, a minha mãe resolveu matar saudades da sua querida boneca. Abriu o baú, retirou a caixa, levantou a tampa… E um grito de terror ecoou pela casa! Toda a gente ocorreu ao grito da minha mãe…

 

Olharam para dentro da caixa e ficaram horrorizados! A bela boneca de porcelana tinha sido assassinada!!! O cabelo natural soltara-se da cabeça. A boneca estava careca! Os braços arrancados, os pés decapitados! O chapéu e o vestido completamente esburacados. Ninguém conseguia acreditar no que via. Retirou-se a boneca da caixa. Por baixo dela, minúsculos bichinhos roedores corriam de um lado para o outro. Estavam descobertos os assassinos.

 

A boneca foi limpa, arejada, colocada numa nova caixa. E não voltou a ser a mesma. Quando a conheci era já neste estado que se encontrava. Muito tempo se passou. Um dia, passando na Praça da Figueira, em Lisboa, a minha mãe reparou num letreiro na fachada de um prédio “Hospital das Bonecas”. Uma campainha tilintou-lhe na cabeça. Entrou. Ao balcão estava uma senhora.

 

A minha mãe pergunta - Aqui arranjam bonecas? - Só vendo! - respondeu a senhora do balcão. -Aaaaaahhhhh! – foi o som decepcionado que minha mãe conseguiu emitir.

 

Agradeceu e veio embora. Pelo caminho até casa pensava intrigada “mas como é possível só venderem bonecas se aquilo é um hospital???”. Não se dando por vencida, algum tempo depois voltou a passar por ali e resolveu entrar de novo. A mesma senhora ao balcão.

 

E de novo a mesma pergunta da minha mãe: - Aqui arranjam bonecas?

E, invariavelmente, a mesma resposta da senhora do balcão: - Só vendo!

 

Desta vez a minha mãe não se calou e comentou intrigada: - Mas como é que só vendem bonecas? Se é um hospital é suposto que as consertem!

- Não, não é isso. O que eu quero dizer é que precisamos de VER a boneca para decidirmos se tem arranjo! Quando digo “só vendo” é VENDO do verbo VER!!!

 

Desta vez o “ Aaaaaahhhh!” emitido pela minha mãe tinha uma sonoridade bem diferente. E fartaram-se de rir as duas pelo equívoco. Pouco tempo depois a moribunda boneca de porcelana deu entrada no hospital das bonecas. Saiu de lá como nova, ressuscitada, mas desvirtuada da sua antiguidade. A minha mãe e eu sentimo-nos algo defraudadas com o resultado. Não apreciámos o cabelo, muito menos o vestido. Mas antes assim, vivinha, do que esburacada e morta.

 

O primeiro brinquedo da minha mãe

Actualmente estão na ordem do dia as discussões mais ou menos acaloradas sobre se deve haver brinquedos para meninas e brinquedos para meninos, livros específicos para um género ou para outro, se as meninas devem vestir de cor-de-rosa e os meninos de azul.


Pois a minha mãe, há 91 anos, estava muito à frente. Porquê?

 

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Porque, pasme-se, este foi o seu primeiro brinquedo! Brinquedo para menina? Brinquedo para menino?


Uma coisa é certa! A ninguém restará dúvidas de que este é precisamente o brinquedo mais adequado para um bebé de poucos meses, seja menina ou menino!!!


Este cavalinho foi-lhe oferecido pelo Sr. Comendador. O Sr. Comendador era uma das pessoas mais ilustres da terra. O título com que foi agraciado assim o indica. Era senhor de muitos negócios, de muitos bens, de muita riqueza. Ora acontece que o Sr. Comendador precisava de se ausentar com muita frequência. Saía em negócios, para Lisboa e para o Brasil, saía em lazer para as termas ou para a Europa.  Durante a sua ausência era o meu avô António que lhe tratava dos seus muitos e variados assuntos burocráticos.


Quando regressava trazia sempre um presente para a minha mãe. Este foi o primeiro de muitos.


O brinquedo é feito em folha de Flandres e é de corda. E fez as delícias da minha mãe, que coitada, nunca teve ordem de lhe tocar. Era a mãe ou a avó que lhe davam corda e então… era vê-lo partir indomável, intrépido, endiabrado, em correria desenfreada, rodopiando velozmente, voltando para trás, empinando-se, não se sabendo ao certo se era o cavaleiro que conduzia o cavalo se era o cavalo que conduzia o cavaleiro.


Também eu, em criança me diverti com ele… mas a história repetiu-se. A minha mãe dava-lhe corda e eu assistia perfeitamente maravilhada às façanhas deste cavalito. Tocar-lhe? Nem me atrevia! Se estendia a mão para o agarrar, sentia o olhar da minha mãe sobre mim, semelhante a alfinetadas, e a mão retraia-se de imediato. O cavalo também desde logo chamou a atenção dos meus filhos. Começaram por espreitá-lo na vitrine onde a minha mãe muito ciosa daquela relíquia, ainda hoje o guarda. Quando pediam para pô-lo a cavalgar pelo chão da sala, eu nem me atrevia a fazê-lo. Não fosse eu estragar algo tão religiosamente protegido ao longo dos tempos. Eram, ora o meu pai, ora  a minha mãe a fazê-lo.


Porque, todos nós, de geração em geração, não tivemos ordem de lhe pôr a mão durante a infância, ele chegou aos nossos dias em bom estado.


Até que um dia, não há muito tempo, inexplicavelmente, a corda partiu-se e o cavalinho imobilizou-se para sempre.


Ainda hoje, quando fiz algumas perguntas à minha mãe sobre o seu primeiro brinquedo para escrever este post, vislumbrei uma expressão triste no seu olhar e desabafou:


-Tenho tanta pena que ele já não possa correr!  

 

Os meus presépios

Já por aqui deixei escrito que foi a minha filha que me estimulou a realizar trabalhos em feltro.


Estava numa fase da vida em que necessitava de ocupar as mãos para libertar a mente e lavar a alma. Em momentos de grande stress ou cansaço, nada melhor do que ter as mãos ocupadas. Não conheço melhor terapia. À falta de melhor, nem que seja a arrumar roupeiros. Mas aprecio algo mais criativo.


O Natal avizinhava-se e a minha filha sabendo da minha paixão por presépios mostrou-me alguns que encontrou na internet. Achei-lhes graça. Não mexia em agulhas e linhas há uma eternidade. Mas se naquele momento procurava algo que me ajudasse a ultrapassar as tempestades da vida, que importância tinha a imperfeição da peça executada?

 

Absolutamente nenhuma! E comecei por este presépio.

 

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Não precisei de moldes. Olhei para a imagem no computador e desenhei-o. Os pontos saíram incertos, um mais abaixo outro mais acima. A distância entre eles também variava. Mas fiquei feliz. Era a minha primeira obra. E percebi que fazer estes trabalhos era pura terapia. Sentia-me mais relaxada e entusiasmada. Cheia de ideias. Era por ali o caminho. E todos cá em casa, satisfeitos com o meu entusiasmo, até me faziam acreditar que de verdadeiras obras de arte se tratavam.   


Seguiram-se outros presépios. Os pontos foram ficando mais certinhos e fui criando os meus próprios modelos.

 

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Os mais bonitinhos e perfeitinhos foram oferecidos a familiares e amigos. E desses não tenho fotos. É que a ideia do blog ainda não nos tinha ocorrido… Ponto… Pára tudo…


Já sei o vai por aí…


Vislumbro um sorrisinho ao canto dos vossos lábios; adivinho o que vos vai no pensamento:


“ Olha para esta, sabe-a toda! Que grande espertinha! Como não tem fotos diz que os presépios até ficaram perfeitinhos!!!”


Depois experimentei outras técnicas. Mas tenho um defeito. Faço apenas para experimentar. Usei pasta de modelar – fiz apenas um presépio; pintei numa pedra da praia – fiz apenas um; Usei pauzinhos – fiz apenas um; Fiz em crochet – fiz apenas dois…  E assim não aperfeiçoo nenhuma das técnicas!

 

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Presentemente gostaria de treinar os presépios em crochet. Vejo-os lindos mas não são tão fáceis de fazer como parecem.


O último presépio aqui apresentado foi terminado há poucos dias e feito muito, muito à pressa. E, muito encarecidamente, peço-vos o de  favor de não reparem na ovelha ou, para ser mais exacta,  na pseudo-ovelha. É que a pobrezita saiu-me com focinho de rato, orelhas de porco e patas de escadote… Foi o melhor que se pode arranjar. Muito agradecida…

 

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E já agora, para todos vós, um feliz Natal com muita Saúde Paz e Harmonia.

Os Natais da minha vida

Gosto do Natal. Embora esta quadra desperte em mim sentimentos contraditórios.


Incomoda-me o consumismo desenfreado, irrita-me a corrida desvairada de loja para loja. Choca-me o culto do objecto.


Gosto do Natal na sua verdadeira essência, pela celebração do nascimento de Jesus, pelo que simboliza em termos de partilha e de dádiva, de união da família.


Recordo com carinho os doces Natais da minha infância e adolescência. Vivendo longe de CASA, entendendo-se, por CASA a nossa terra natal e a casa dos meus avós, o Natal era o momento dos encontros familiares.
Quando vivíamos no Alentejo estávamos a cerca de 500 Km de distância. E, naquele tempo, 500 Km eram bem mais compridos de que hoje.


As estradas eram péssimas, estreitas, esburacadas e cheias de curvas. O nosso carro era velho, a cair de podre, comprado para aí em décima segunda mão. Numa única viagem tivemos três furos e demorámos 16 horas.


Mas chegávamos de coração cheio. E que alegria rever os meus avós, tios e primos, os tios que lá viviam e os que também, tal como nós, se deslocavam à terra para em conjunto celebrarmos a festa da família.   


Recordo as consoadas na cozinha do meu tio Zeca, junto da grande lareira à volta da qual todos nos reuníamos. Esqueciam-se as tristezas, as preocupações. Só havia alegria e boa disposição, celebrando o prazer de estarmos juntos. E que conversas saborosas adoçadas pelos velhozes que a minha tia ia fritando e que comíamos ainda quentinhos.


Depois, noite dentro, chegava o Menino Jesus. Descia pela chaminé e deixava os presentes nos sapatos que colocávamos na lareira antes de irmos para a cama.
A noite era mal dormida. Ansiavamos pelo clarear do dia para corrermos para a cozinha e depararmos com a surpresa dos presentes. Alegria no estado puro.
Tentei transmitir aos meus filhos a magia dos Natais que vivi. Mas não consegui competir com o markting televisivo nem com os coleguinhas de infantário que recebiam presentes oferecidos pelo Pai Natal colocados junto da árvore. De Menino Jesus nem rasto…


 Quando tentava que deixassem os sapatos junto do fogão, olhavam-me de soslaio,  argumentando com todo o pragmatismo que não havia Pai Natal que descesse pelo exaustor… E dei-me por vencida…  


Para mim, mais do que a árvore, são os presépios que melhor simbolizam o Natal. Representam a Natividade e a união da família.


Há poucos anos comecei a coleccioná-los. Presentemente são 101. Uns comprados por mim, outros oferecidos. Os meus filhos têm contribuído bastante para o engrossar deste número. Tenho-os nos mais diversos materiais, uns de prata outros de lata, de madeira, barro, pano ou serrapilheira. De plasticina, lã, cortiça ou com traços de tinta da China. Uns mais tradicionais, outros mais originais. Os nacionais e os internacionais.


Decorar a casa com eles leva o seu tempo. Muito tempo. Mas é grande o prazer ao ver a casa preparada para as festividades que se aproximam.

 

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